“O número de indivíduos que realmente compreendem a natureza do karate é extremamente pequeno. Além disso, uma vez que o karate está sempre avançando, não é mais possível falar no karate de hoje em dia e no karate de dez anos atrás em um mesmo fôlego. Da mesma forma, ainda menos pessoas percebem que o karate praticado hoje em Tóquio é completamente diferente, na sua forma, daquele que era praticado antigamente em Okinawa”.

Gichin Funakoshi. Karate-do Nyumon (1943)

Karate estilo antigo (old style karate) é uma expressão bastante usada dentro da comunidade internacional de pesquisadores sobre karate para referir-se ao tipo de karate que era praticado durante o período pré-moderno da arte, principalmente de antes da virada do século XIX para o XX, quando o ensino do karate saiu do sistema de sigilo, massificou-se e modernizou-se. Entre as principais características do karate antigo estão:

  • Sob o ponto de vista técnico ele era completamente voltado para autodefesa realista e eficaz. Isto é, o karate antigo envolvia somente aquilo que seria útil para utilização em situações verdadeiras de ameaça à vida, deixando de lado questões não relacionadas, como as estéticas ou esportivas.

“O que é Karate? É a arte que exercitamos a mente e o corpo para promover a saúde na vida cotidiana, mas em caso de emergência é a arte da autodefesa sem nenhuma arma. […] Segundo a história oral, antigamente, a política de ensino do Karate enfatizava as técnicas de autodefesa.”

Chojun Miyagi. Historical Outline of Karate-Do: Martial Arts of Ryukyu (1936)

  • O ensino originalmente era feito individualmente ou em grupos muito pequenos, e em sigilo.

“Naquele tempo, a prática do karatê era proibida pelo governo, por isso as sessões tinham de ser realizadas em segredo, e os alunos eram terminantemente proibidos por seus professores de discutir com quem quer que fosse o fato de estarem aprendendo a arte.

[…] Homens que se sabia serem praticantes aceitavam uns poucos alunos em sigilo, mas sua sobrevivência dependia de trabalho que não tinha relação com o karatê.”

Gichin Funakoshi. Karate-Do: O Meu Modo de Vida (1956)

  • Os kata eram realmente o centro da transmissão e prática dos ensinamentos do karate, e eles eram passados adiante junto com a compreensão verdadeira do seu funcionamento. Assim, o kumite então praticado era diretamente baseado nos kata, porém usando as aplicações verdadeiras (originais) deles. Essa compreensão infelizmente foi perdida durante a transição do karate antigo para o moderno, mas a comunidade de pesquisa tem se esforçado para resgatar esses ensinamentos. O estudo e decomposição dos kata (bunkai) é certamente o aspecto mais importante na compreensão técnica do karate antigo, e o Muidokan é respeitado internacionalmente como uma das maiores fontes para interpretação de qualidade dos kata conforme os ensinamentos antigos.

“Antigamente, dizia-se que kata e kumite eram como as rodas de um carro.”

Ei’Ichi Miyazato. Okinawa Den Gojuryu Karate-Do (1978)

“Desnecessário dizer que o kumite não deve ser independente e separado do kata, uma vez que todo kata é aplicado no kumite. Portanto, o sacrifício de kata em prol do kumite nunca deve ser permitido.”

Gichin Funakoshi. Karate-Do Kyohan (1935)

 

A maioria das demais características técnicas do karate antigo decorre da primeira característica mencionada acima — a arte era feita para ser usada em situações reais de autodefesa. Assim, citamos ainda outras características importantes:

  • O karate antigo é uma arte eclética em termos de tipos de técnicas de luta usadas. Existem métodos de “agarramento” totalmente misturados com métodos de impacto, ataque a partes moles do corpo (como olhos, traqueia e testículos), métodos de desequilíbrio e arremesso e outros (alguns desses métodos você pode ver no vídeo no início deste artigo). O aspecto de luta de curta distância era enfatizado, o que é próprio da natureza dos confrontos em defesa pessoal.

“A lição principal que o Sensei [Juhatsu Kyoda] enfatizou foi o uso de “kake-ai;” a capacidade de usar técnicas em harmonia umas com as outras, especialmente em curta distância. No caso de a distância da interação combativa estar mais longe, é melhor evitar o confronto. A técnica do karate é uma habilidade defensiva usada em curta distância e não deve ser usada de outra forma.”

Shigekazu Kanzaki, 3º soke do estilo To’on-Ryu, em entrevista a Patrick McCarthy. IRKRS, 2001.

  • Existia também a questão de que cada praticante acabava desenvolvendo uma espécie de um estilo “próprio”, sempre baseado nos kata que praticava (não havia estilos modernos ainda — nem mesmo estilos okinawanos populares como Shorin-ryu, Goju-ryu e Uechi-ryu). O que funciona melhor para um praticante não necessariamente funciona melhor para outro praticante. O que um praticante aprendia (na maior parte das vezes com vários mestres diferentes) não necessariamente era o mesmo que outro praticante aprendia. Então não fazia sentido que os praticantes tivessem o mesmo estilo para lutar em situações reais de defesa pessoal. Em vez disso, cada um tinha uma maneira própria de lutar, pontos fortes próprios, e isso também se refletia nas versões diferentes que existiam de cada kata (sendo que hoje nós herdamos várias centenas de versões, por causa desse fato).

Um último aspecto que eu gostaria de enfatizar é o fato de que todos os registros históricos fundamentais do karate antigo mostram que a arte tinha um componente importantíssimo de melhorar a qualidade de vida do praticante, tanto no aspecto físico quanto no mental. Isto é, o treinamento teria o benefício extra de melhorar a saúde, prolongar a vida além da parte defesa pessoal, e de formar pessoas mais felizes e mais em paz com o mundo. Esse continua sendo um benefício do karate até hoje (ou pelo menos algumas vezes), e o estudo do karate antigo contribui para nos aproximar cada vez de alcançar desse aspecto do treinamento.

Historicamente, os praticantes diferentes de karate antigo chamavam a arte de nomes diferentes — tī’gwa チィグァ, tī 手, tōdī 唐手, te 手, tōde 唐手, kenpō 拳法, etc. Mas um nome que eu uso com mais frequência é Ryūkyū Tōde ou Ryūkyū Karate 琉球唐手 (as duas pronúncias são válidas). Isto é, Tōde/Karate do Reino de Ryūkyū. Acontece que durante a maior parte do período do karate antigo o Reino de Ryūkyū ainda estava ativo. No final do século XIX esse Estado foi dissolvido e transformado na prefeitura japonesa de Okinawa — aproximadamente no mesmo período em que o karate antigo entrou em transição para o karate moderno, e Ryūkyū Tōde foi se transformando em Karate-dō.

Se você é interessado neste assunto, certamente vai gostar de ler mais a respeito aqui na página do Muidokan. Já temos artigos sobre princípios táticos fundamentais do karate antigo, sobre princípios técnicos fundamentais, e também vários vídeos de aplicações que foram pesquisadas seguindo os ensinamentos originais para bunkai, como por exemplo aqui e aqui. O artigo inaugural do Muidokan também explica bem mais sobre a mudança do karate antigo para o karate moderno.

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Samir Berardo